quinta-feira, 30 de junho de 2011

Violência Amazônica


Port Lúcio Flávio Pinto

Acabávamos de atravessar de Xambioá, bem em frente, no Estado de Goiás (atual Tocantins), para o outro lado do rio Araguaia, em São Geraldo, no Pará. Percurso de mais de 500 metros num rio caudaloso e, nesse ponto, fundo. Ainda descíamos da lancha (“voadeira”, na linguagem local), quando um soldado da Polícia Militar, rifle em riste, engatilhado, pediu nossos documentos.

– Como!? – espantou-se, já indignado, o senador Teotonio Vilela, o “menestrel das Alagoas”, convertido, sob a bênção heróica da canção de Milton Nascimento, de usineiro nordestino, a mais antiga (e das mais danosas) das elites nacionais, a campeão das liberdades públicas.

– Identifiquem-se! – foi a ordem do soldado, caprichando na mira, indiferente ao espanto que causava.

Teotônio disse que era senador da república e não ia se identificar coisa nenhuma. Não estava entrando num país estrangeiro. Circulava por sua própria pátria. Fez menção de avançar. Segurei seu braço e lhe pedi que atendesse ao “pedido” do PM.



Ainda contrariado, Teotônio puxou sua vistosa carteira senatorial. O soldado a olhou com rigor e só então se virou para “nosotros”: os deputados federais peemedebistas Jader Barbalho (do Pará) e Cristina Tavares (Pernambuco), mais um jornalista de Brasília (Antônio Carlos Queiroz) e eu. Só depois de nos ter devidamente identificado, o PM nos deixou passar na direção de São Geraldo. Não deixando de nos acompanhar com seus olhos vigilantes.

Desse momento em diante o que vimos foram expressões de medo, às vezes daquele horror puro reconstituído por Joseph Conrad no célebre romance que deu origem a um dos melhores filmes de guerra, “Apocalypse Now”, de Francis Ford Coppola.



Estávamos em guerra no “bico do Papagaio”, esta ponta de terra que avança do sertão para “bicar” a Amazônia com sua crua realidade e o misticismo simbólico dos sertanejos. Eles cruzam o rio atrás da bandeira verde, que os guiará para a terra abençoada, o Éden fundiário, capaz de dar-lhes a condição de proprietários rurais, jamais alcançada na própria terra sofrida e explorada, onde têm que trabalhar para um senhor?

Naquele ano de 1982 ainda ressoavam com força as histórias em torno da guerrilha do Partido Comunista do Brasil no Araguaia, uma década depois da sua extinção. As cinzas da segurança nacional foram reavivadas e viraram brasas de novo, incandescentes



No “tempo da guerra”, três mil soldados do Exército foram acantonados em Xambioá para dar combate a 69 guerrilheiros, imbuídos daquela boa vontade que pode ser o passaporte para o desastre, quando turva a inteligência e a compreensão, como aconteceu ali. Mesmo depois que eles se foram, quando o combate convencional foi substituído pelas operações móveis (e, sobretudo, a população local abandonou os guerrilheiros, precipitando e encurtando o fim do “foco”), os barqueiros que faziam a travessia eram informantes a serviço do comandante camuflado da região, o tenente-coronel Sebastião Rodrigues de Moura, mais conhecido por Curió. Ele se dizia membro do todo-poderoso Conselho de Segurança Nacional. Mas era mesmo do soturno – e pouco eficiente – Serviço Nacional de Informações, o SNI.

A arrogância do PM, mesmo diante de representantes do poder legislativo nacional, e o pavor da população, só controlado à noite, virada em claro até o amanhecer pela prosa encantadora do senador, a desfiar “causos” sem fim sobre as entranhas assustadoras do Brasil, que ele tão bem conhecia, tinha uma nova razão para existir.

O governo militar acusava dois religiosos franceses de estarem tentando criar um novo “foco” de guerra popular naquelas paragens. Aristide Camio e François Gouriou tinham vindo da Indochina e conheciam muito bem a opressão. Tornaram-se vítimas dela: presos por atentado à segurança nacional, apontados como insufladores de uma emboscada de posseiros contra agentes da Polícia Federal e técnicos do Incra, foram mantidos presos até serem expulsos do país, depois de julgados pela justiça militar como subversivos.



Enquanto, mais uma vez, estava diante da violência sufocante e permanente da Amazônia, por vezes invisível ou imperceptível, pensei no significado etimológico e semântico da palavra “ocupação”. A Amazônia era – e continua a ser – fronteira de ocupação. Todos repetem a frase. Poucos se apercebem do seu significado profundo.

A nova expressão, dos anos de 1970, substituiu o jargão dos anos de 40/50. Naquela época, a nação queria que a Amazônia fosse “valorizada”. Por isso, o primeiro organismo criado (em 1953) para promover o desenvolvimento regional se chamava Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA), em plena era do “varguismo” nacionalista – e, já então, democrático.



Era preciso conhecer para valorizar. E, ao valorizar, reconhecer o valor daquilo que constituía a Amazônia: sua natureza fantástica e sua gente resistente e brava. Já “ocupação” implica em impor, submeter, fazer o nativo se curvar ao senhor que chega, dono da iniciativa, árbitro do que fazer, beneficiário do que se tiver feito. A Amazônia deixando de ser o que é para se tornar o que o colonizador quer que seja: um lugar de crescimento econômico acelerado, capaz de produzir mercadorias aceitáveis no mercado mundial, em volume crescente

Para isso, o nativo rudimentar é posto para fora dos seus domínios, apesar de seus séculos de ancestralidade. A paisagem se transforma para se tornar o cenário onde emergirão hidrelétricas, estranhas, minas, rodovias, cidades, portos – a modernidade, enfim.

Para “amansar” a terra bravia, milhares de seres humanos destituídos de posses, mas cheios de esperança, são lançados na linha de frente, como se fosse (e é) um front de guerra. Conflitos, mortes, desmatamentos, violência – tudo isso é um meio ilegítimo para o fim necessário: fazer da Amazônia uma usina de dólares.

Se um casal (dito ambientalista) é morto porque se opõe a esse desígnio no seu chão imediato, que é isso senão o preço devido a pagar para que a ocupação da Amazônia a torne uma fonte de geração de dólares e de consumação do projeto do Brasil Grande de militares e civis? A violência é como um combustível dessa engrenagem. Por que o espanto com uma morte depois da outra? Como dizem os geopolíticos de gabinete, não se faz um omelete sem quebrar ovos. A quebradeira da Amazônia é do tamanho que ela tem.



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